“Disse-me um dia, com a lhaneza superior que era a sua natural maneira de estar em paz consigo mesmo: nunca fui um cientista. Estudei, tentei perceber, ensinei o melhor que soube. Mas procurei tudo fazer para que outros, para que vocês, meus alunos, fossem para fora, aprendessem a fazer ciência, a ser cientistas, e talvez um dia a fazer ciência em Portugal.”
Um Mestre
Em tão poucas palavras, mesmo escritas, como havemos de falar dele, sem constantemente nos obrigarmos a referi-lo connosco e ao longo das nossas próprias vidas? Essa será outra história, a que nos liga aos outros, talvez afinal mais nossa que deles.
Mas seria dele, apenas dele mesmo, Manuel José Castro Petrony de Abreu Faro, no centro do seu mundo e do seu tempo que nos importaria falar.
Mas isso, não sabemos ainda fazer.
Possivelmente, porque para tanto não basta a memória, mesmo quando estão presentes muitos dos que em si transportam as memórias de quem lembramos, queremos lembrar.
Passado que foi o tempo de falar das coisas no presente, lembrar já não chega. É preciso investigar e estudar. Quem queremos lembrar e honrar afinal deve merecer esse esforço e essa objectividade.
Vai ser preciso conseguir juntar factos e fragmentos, e tentar produzir sentido. A partir de memórias individuais, certamente, e pelos caminhos aqui inaugurados do testemunho frágil e comovido, mas especialmente vai ser preciso filtrar os nossos testemunhos pelas grelhas da história oral, alargá-los no confronto surpreso com os documentos, integrá-los com outras memórias da época, e com o sentido revelado ou suposto das acções e das instituições no seu contexto.
Para ir mais longe, impõe-se-nos portanto fazer ciência, história, neste caso. É afinal assim também nas nossas profissões, onde aprendemos a decantar as evidências e os impulsos de reconhecimento do real, das explicações que se nos impõem como verdadeiras, mas que é nossa obrigação testar, aferir, rever, modificar.
A homenagem fundadora de hoje poderia assim mobilizar vontades para se vir a fixar uma agenda de investigação profissional e feita por profissionais da história, sobre as origens da investigação científica moderna e das suas instituições, complementando, enquanto é tempo, a pobreza dos fundos documentais com a riqueza potencial dos testemunhos vivos e, em tantos casos, com a salvação de textos, imagens e de epistolografia privados, aparentemente sem interesse e de conservação fragilíssima. Manuel Abreu Faro certamente aí reviverá, no sentido do seu tempo e num momento singular da história do nosso desenvolvimento científico e das nossas universidades.
Mas entretanto, hoje, difícil mesmo é falar de quem já não está vivo, como se estivesse. Difícil, mas necessário, é ainda evocar a sua presença viva.
Tento reproduzir as palavras e os gestos, um momento precioso de sabedoria feita aula:
Estar parado e ver, medir, o que por nós passa: a pressão, a intensidade do campo, a altura da vaga.
Ou, pelo contrário, marcar um momento, fixar esse instantâneo, e seguir no espaço a altura da vaga, a intensidade do campo, a pressão.
Ser o mesmo o que se mede: no fluir do tempo ou no movimento no espaço. Iguais, a fotografia instantânea do fenómeno no espaço, ou o gráfico da sua passagem no tempo, num só ponto.
Uma onda é isso.
Fui seu aluno, deslumbrado: um professor de física, enfim!
Fui seu monitor (entretanto, e pouco depois, Abreu Faro esteve presidente do Instituto de Alta Cultura, depois Secretário de Estado, voltou ao Técnico) – fez-me seu assistente e bolseiro do IAC até ao doutoramento em Paris, a que me encorajou generosamente. Se ainda tenho hoje a nacionalidade portuguesa devo-lhe também a ele e ao Conselho Escolar do IST, que se recusaram a ceder à pressão política para me cancelarem o contrato de assistente, a bolsa do IAC, apesar de ter tido de passar a salto a fronteira, de não poder voltar a Portugal e de estar emitido contra mim um mandato de captura da Pide. Não há gratidão que baste.
Falávamos muito, escrevíamo-nos cartas breves. Obrigou-me a fazer a agregação. Quando quis começar a regressar a Portugal e aqui me disseram, certamente com boas intenções, “mas para quê, se aqui não tens nada para fazer, tem juízo e deixa-te estar na Suíça! “, ofereceu-me este anfiteatro do Complexo para iniciar um curso livre de física de partículas, anunciado nos jornais diários e também em cartazes no Técnico, curso esse de onde, com o tempo, saiu uma escola científica, a renovação do ensino experimental, um laboratório de investigação, a adesão ao CERN.
Reencontrámo-nos muitas vezes, mas afinal pouquíssimas, como se o tempo de cada um fosse para sempre eterno, e nunca nos fossem faltar ocasiões para pôr a conversa em dia.
Não são tantas vezes assim, cegas e imprudentes, as amizades satisfeitas, seguras?… Doem por isso mais ainda as memórias que não houve tempo de construirmos, as conversas que se aprazaram e se não tiveram, as visitas e as viagens que se não fizeram, as homenagens que, em vida, tão próximos, não chegámos a prestar.
Fomos juntos à China, numa visita oficial, era ele presidente da Academia de Ciências, eu ministro. De todo o coração lho agradecerei sempre mais esse gesto. Guardo retratos e a memória da sua felicidade transparente, no alto do antigo observatório astronómico de Pequim, onde Tomás Pereira e tantos outros portugueses viveram, construíram instrumentos, fizeram medidas, contribuíram para a tolerância, e para o lugar que Portugal tem no mundo.
Por imperativo moral, tentou pôr ordem nos negócios da Academia de Ciências de Lisboa quando foi presidente da instituição, e para tanto teve à disposição os serviços do ministério. Mas ambos havíamos de reconhecer que a legitimidade, a verdade, o apoio oficial, a força da lei, não eram bastantes. Acompanhei comovido a tragédia pessoal com que viveu parte desse período, a perfídia e a chantagem que o cercaram, as lágrimas nos olhos quando me anunciou que se iria demitir e porquê. Não o soube ajudar o suficiente. Não me perdoei ainda essa incapacidade de o apoiar eficazmente, a ele, um homem inteiramente bom, contra o mal, contra a maldade.
Disse-me um dia, com a lhaneza superior que era a sua natural maneira de estar em paz consigo mesmo: nunca fui um cientista. Estudei, tentei perceber, ensinei o melhor que soube. Mas procurei tudo fazer para que outros, para que vocês, meus alunos, fossem para fora, aprendessem a fazer ciência, a ser cientistas, e talvez um dia a fazer ciência em Portugal.
E, de facto, ajudou a criar uma geração fundadora, e as gerações seguintes que juntas haviam de ajudar a vencer o atraso científico, fazer instituições, construir ciência moderna em Portugal, e resistir às dificuldades, persistir sempre.
Isso pode e deve ser estudado.
Difícil mesmo hoje é falar de quem já não está connosco, como se estivesse.
Que me perdoem tentar ainda e novamente reproduzir as suas palavras e gestos:
Estar parado e ver, medir, o que por nós passa: a pressão, a intensidade do campo, a altura da vaga.
Ou, pelo contrário, marcar um momento, fixar o tempo e, nessa imagem instantânea, seguir no espaço a altura da vaga, a intensidade do campo, a pressão.
Ser o mesmo o que se mede de um ou outro modo. O fluir do tempo ou o movimento no espaço.
Uma onda é isso.
José Mariano Gago
Lisboa, IST, 26 de Novembro de 2013