“Quando fazia a radiografia de um problema interligava sempre aspetos matemáticos, científicos e culturais da realidade subjacente.”
Fui aluno do Prof. Abreu Faro no IST no final da década de 1960 e privei com ele de perto durante toda a década de 1970.
O Prof. Faro era um pensador imaginativo dotado de extraordinárias faculdades intelectuais, muito poliédrico na sua bem estruturada mundividência. Quando fazia a radiografia de um problema interligava sempre aspetos matemáticos, científicos e culturais da realidade subjacente. Era com grande empenho e competência que valorizava as suas aulas, marcadas sempre pelo rigor do formalismo matemático e por um florilégio de metáforas filosóficas com que pretendia aliviar a dureza da matéria, e acautelar e apurar o gosto científico das gerações vindouras pela Engenharia.
Lembro‐me de uma dessas aulas que versava o tema das oscilações. O Prof. Faro, apontando para um aluno da primeira fila do anfiteatro, faz‐lhe a pergunta logo de início: “Você sabe o que é um oscilador de relaxação?’ E, resfolegando, com a intensidade de uma lucidez profética, afirma: “Você diz A eu digo B, você diz A eu digo B… Isto é um oscilador de relaxação!”.
Troquei várias cartas com o Prof. Faro, e um dia em janeiro de 1974 fui esperá‐lo ao aeroporto de Amsterdão. Jantámos juntos nesse dia, e lembro‐me de ele ter discorrido profusamente e com grande entusiasmo sobre o desenvolvimento do conhecimento científico da Natureza, o pensamento cartesiano, o génio de René Descartes e a sua vida.
No dia seguinte iria ter mais um encontro com o Prof. Jaap Kistemaker, presidente de um então afamado instituto de investigação experimental no domínio da Física Atómica, Molecular e de Plasmas. O Prof. Kistemaker era um homem de ação, positivo, exigente e pragmático, muito sólido de opiniões, e possuído de um conhecimento organizado que aplicava na gestão do seu FOM Instituut que era um lugar de novidade nessa época, visitado por proeminentes cientistas europeus, americanos, japoneses e até russos, apesar da plena época de guerra fria que se vivia. Era professor em Leiden, figura pública na Holanda e próximo dos círculos da rainha Juliana.
O Prof. Kistemaker não era um homem de receitas analíticas e assentava na discussão pragmática de como fazer para que as coisas aconteçam. Já tinha aconselhado o Prof. Faro na definição de estratégias de coordenação de múltiplas atividades de dinamização de projetos de investigação no Complexo Interdisciplinar, inaugurado um ano antes, de que o Prof. Abreu Faro era presidente e o verdadeiro fundador, e este era mais um encontro entre os dois para atualização dessa e doutras matérias.
Fui convidado a assistir a uma parte da conversa que se estendeu por uma inteira manhã entre os dois. Ora tinha sido publicado um tempo antes um denso e espesso compêndio sobre Plasmas, que suscitava dos especialistas de então muito interesse apesar da fama de ser “duro de roer”. No início da conversa, o Prof. Kistemaker evocou o livro e pôs o assunto da complexidade do seu conteúdo em cartaz. Voltou-se para o Prof. Faro e inquiriu: “Faro, did you read that book?”. Tendo o Prof. Faro respondido que sim, retorquiu: “Did you understand chapter 2 ?”. O Prof. Faro, de credenciais reforçadas, mostrou‐se à altura dos seus créditos, e, com muita diplomacia mas invadido de uma grande emoção, embarca por uns minutos numa ação pedagógica de alguma acrobacia intelectual para o vislumbre, por entre os meandros dum estreitíssimo gargalo de estrangulamento, da passagem para as fases e capítulos seguintes do dito livro.
O Prof. Kistemaker ouviu com atenção o Prof. Faro durante esta breve incursão laboriosa e, no final, com o brilho nos olhos deixados pelas cintilâncias produzidas, e um sorriso de contentamento e de grande admiração, fixou o Prof. Faro de frente e disse‐lhe numa frase afetuosa e simples: “Faro, you are a very clever man”.
Esta pequena história, que quero partilhar convosco na hora desta homenagem, revela uma faceta da personalidade fascinante e do homem ímpar que foi, no IST e no universo da Ciência em Portugal, o Prof. Abreu Faro.