Abreu Faro para o Mundo. Avô Manel para mim.

“Nunca conheci Ser mais soberano, mais dono do seu tempo, mais dono do seu modo. Pleno. Livre.”

Testemunho de João Pedro (Faro) Varandas

Manuel José Castro Petrony de Abreu Faro foi, entre muitas coisas, avô. Tive o privilégio de ser seu neto.

O avô que nunca, em momento algum, deixou de ensinar. Aquele que perante uma pergunta… replicava questionando, que entretanto sugeria e enveredava por uma recomendação de leitura de um livro qualquer que haveria de ter de procurar e encontrar somewhere, somehow.

Deu-me para ler os Maias, de Eça de Queirós, aos 12 anos. Uns capítulos mais tarde, descortinei que podia haver um Afonso da Maia latente.

Sabedoria, calma, sindérese, tranquilidade. Daquele preceptor emanava autoridade e eram emitidas constantes mensagens de procura da excelência, de interiorização da tentativa como condição precedente, de qualificação da pesquisa… minha, dele, dos outros, como pressuposto fundamental para tudo o resto. Simultaneamente, ensinava-me que temos de enquadrar o Ser no tempo e no espaço, na civitas e perante a natureza, corpus sans mens sana.

Abreu Faro era um poeta da ciência, era um orquestrador da imaginação, um humanista permanente que, com arte e engenho, conseguia criar momentos divinos, reunindo harmoniosamente algarismos, pautas de música, ensaios, paletas e que não vacilava perante o imprevisto, perante o medo ou a ignorância.

Admirado, seguido, amado, invejado, Abreu Faro seguiu o percurso que sozinho idealizou. O seu luxo e a sua excentricidade residiam no tempo, naquele tempo, em que livre e conscientemente fazia efectivamente aquilo que queria e como queria. Nunca conheci Ser mais soberano, mais dono do seu tempo, mais dono do seu modo. Pleno. Livre.

Se uns são ou eram politicamente correctos e outros politicamente incorrectos, Abreu Faro era outra coisa e era feito “de outra loiça”, perigosamente independente, dramaticamente livre.

Desde criança e à medida que fui crescendo e aprendendo com ele e com a vida, fui-me apercebendo que o meu avô era professor, era engenheiro, era físico, era matemático, era cientista, era filósofo, era escritor. Era um pedagogo convicto, um mestre devoto e apaixonado que queria – sempre – transmitir algo, deixar algo, enfim… ensinar.

O legado que deixava, fosse aos seus alunos, aos seus pares, aos seus descendentes era sempre inquietante, pois era contínuo, não tinha fronteiras, não tinha limites e, muitas vezes, só era compreensível, só era decifrável, dias, meses ou anos depois daquele momento em que tinha falado, escrito ou segredado algo.

A generosidade da partilha do saber, o cuidado na transmissão do princípio ou do valor, concretizada em cada aula, em cada lição diária ou de vida, eram notáveis.

Mas Abreu Faro era alguém que, desconfiava eu, poderia ter sido jurista, médico, economista, arquitecto… poderia ser quase tudo… dada a sua polivalência e as suas incríveis capacidades intelectuais. Era um homem de múltiplas vocações e também ensinava assim, porque aprendia depressa e bem.

Deduzia e intuía como respirava.

Lembro-me de ser pequeno e de entrar no escritório dele, naquele santuário de ciência, naquele empíreo com centenas e centenas de livros, folhas soltas com equações, um telescópio escondido, bússolas perdidas, retratos de Einstein, Mozart e Camões, pinturas de Jesus Cristo, fotografias de antepassados da nossa família, obras de Shakespeare ao lado de Kant e Descartes, misturadas com os jornais da semana, com artigos científicos, relatórios de mestrado, teses de doutoramento, pequenos objectos que guardava e que trazia das suas viagens.

Recordo ainda o cheiro do tabaco do cachimbo, o som da colher na chávena de chá passando discretamente entre as notas da Ave Maria de Schubert.

E ensaios, muitos ensaios… muitas reflexões – com números e letras – que vertia em papel e que depois rasgava e atirava para o lixo.

Depois, endireitava-se na sua cadeira, em frente à sua velha secretária, colocava a mão esquerda na testa e os óculos em posição de combate desafiando novamente aquele papel e, em poucos momentos, umas réstias de branco moído subsistiam na outrora nova folha. Até à hora de jantar havia muito tempo… havia tempo.

Tudo isto… ao som de música clássica. O compositor variava consoante a sua disposição e ao ritmo do seu humor. O volume também, sendo que não era raro entrar no hall de entrada do prédio com o número 4 da Avenida Marconi e escutar o som que se evadia daquele escritório remoto e sito no quarto andar, com vista para a Praça de Londres e para o infinito.

Abreu Faro era um homem de convicções, com uma sólida formação ética e moral. Tinha uma base inalienável de valores fundamentais que – contrariamente a tudo o resto – não era passível de ser discutida. Indissociável dos seus princípios, prosseguia e moldava. Mas cumprida a sua carta axiológica, feito o devido registo de interesses, tudo era campo aberto, tudo era um mar de grandes ondas e dúvidas, uma galáxia de teorias, hipóteses e reflexões. Teses, antíteses, sínteses, visões e especulações, argumentos e alinhamentos, sonhos e realidades.

Abreu Faro cresceu cedo. Por força de vários acontecimentos que definiram a sua personalidade, foi obrigado a crescer antes e mais rapidamente do que muitas outras crianças da sua geração e provenientes do seu meio.

O destino exigiu-lhe esforços redobrados e testou-o. Como sempre, evidenciou a sua capacidade, o seu talento, a sua fibra. Prevaleceu e superou-se.

Os infindáveis desafios, as sucessivas provas e provações deram-lhe ânimo, garantiram crença, permitiram que a esperança se renovasse vezes sem conta e se convertesse em fé e Abreu Faro pelo que fez e pelo exemplo, aos seus próprios olhos e aos olhos de quem o conhecia, traçou uma linha direita e fez dela o seu caminho.

Abreu Faro tinha credibilidade. Era credível e inspirava confiança. O seu discurso tinha substrato em razão da experiência, em virtude do trajecto e do que, de facto, acontecia e se demonstrava.

A teoria não era órfã. Havia sequência prática… sempre.

A autoridade, legítima e profunda, advinha do exemplo. A motivação que dava e o encanto que gerava eram sustentados pela probabilidade, pela forte probabilidade, do evento que vaticinava, do fenómeno em que ele acreditava, em que nos fazia acreditar, e que… reunindo esforço, empenho, sapiência, estudo… acabava por ocorrer…

Talvez das frases mais marcantes que transporto comigo e que partilho com amigos, com pessoas com as quais trabalhei e que liderei… talvez aquilo que tenha dito e que mais me influenciou, foi quando me disse, com a sua voz grave, naquele seu jeito pausado e com aquele seu olhar único e de intensidade extrema:

“Quando se é forte, verdadeiramente forte, e se tem um pensamento novo, moderno, não se inventam circunstâncias de impossibilidade”.

Nunca recebi bálsamo equivalente. Esta frase, felizmente, persegue-me e graças a ela, várias acções têm sido praticadas.

Os vastíssimos conhecimentos que tinha não eram produto do destino ou do acaso. Houve sempre muito trabalho, muito brio e muita seriedade em cada momento de estudo. O talento, o rasgo, a velocidade de raciocínio eram suportados, também, numa brutal dose de incessante pesquisa e no respeito pelo trabalho intelectual de muitos brilhantes e inesquecíveis que o antecederam e que foram seus contemporâneos.

Não acreditava em génios. Acreditava sim em grandes momentos de inspiração e na frequência ou regularidade desses momentos por parte de alguns que evidenciavam, aqui e ali, certas aptidões. E tudo isso dava muito trabalho…

Quando se deixa um depoimento sobre alguém tão especial e com quem tivemos a felicidade de conviver, desde que nascemos e regularmente, durante vinte e três anos fica sempre muito por dizer. Seguramente, existem e existiram pessoas que tiveram idêntico privilégio e que o observaram de diferentes ângulos, com outras motivações e noutros contextos.

Independentemente das notas biográficas e da sua frieza cronológica, sem prejuízo da objectividade e da justiça que essa mesma objectividade comporta em relação ao Homem em causa, evocando o seu indiscutível mérito, o meu testemunho, o meu juízo, será sempre subjectivo e padece fatalmente de um amor indiscutível e incondicional que – ainda hoje – sinto pela pessoa do meu Avô, do meu querido “Avô Manel”. Confesso que, não obstante tudo o resto, é sentimental, é emocional, é puro e genuíno afecto, é o amor que subsiste e que sobressai relativamente ao que ficou e ao que não ficou.

Desde criança, desde muito pequeno, desde que me punha às suas cavalitas e contava histórias fantásticas e desenhava figuras geométricas com fósforos em cima da mesa da casa-de-jantar, que fui sempre completamente apaixonado pelo meu avô. Era diferente de tudo.

Os pequenos-almoços a discutir a realidade política do País, desde o início da década de 80, fosse em que ano fosse e independentemente da minha idade, as tardes no seu escritório, as infindáveis lições de História, de Filosofia, os Natais, as idas aos museus, as noites a escutar a BBC, as constantes recomendações de leitura, as conversas na praia do Sul rodeado dos seus amigos… os conselhos, os seus sábios conselhos…

Espero que um dia os meus filhos, que teriam de ser Sofia e Manuel e ambos Abreu Faro, tenham a felicidade de amar e admirar um familiar seu com a mesma constância e intensidade com que amo e admiro o meu avô, uma incontornável referência da minha vida e, espero, de tantos outros que com ele privaram.

“Há sempre além”, dizia-me ele, tantas e tantas vezes, quando a adversidade parecia prevalecer, quando algo não corria como queríamos. Hoje, quando penso, quando constato e deixo este depoimento, nestas circunstâncias em concreto e por esta homenagem em particular, verifico que tinha razão. Ele estava certo.

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